Respondendo a um desafio lançado por um amigo que encontra no meu esquerdismo um profundo ressentimento com a queda do muro de Berlim.
Caro J.
Em 1979 era um “esquerdista” que via com receio o fim dos regimes comunistas. É verdade.
Não porque simpatizasse com a hegemonia comunista, a prepotência soviética ou por mero artifício ideológico.
Eram outros os receios.
O maior seria a ideia de que a “democracia ocidental” vencera o comunismo, a ideia de que o Leste europeu viveria um delírio extremo, perturbado por guerras civis e acertos de conta, que os países de África render-se-iam as lógicas de mercado, aprofundando ainda mais a pobreza dos seus povos e, sobretudo, o que seria viver num mundo onde não existisse pelo menos a oposição as lógicas de um único sistema.
Evidentemente, o czarismo russo de matriz ideológica em nada contribuía para acreditar num futuro radioso. A China nunca despertou tal ideia e como tal sempre foi, no meu entender “esquerdista”, uma carta fora do baralho do comunismo.
Escrevia eu na altura em textos escolares (Lembraste? Eu tinha uma vaga ideia e fui ao caixote de coisas antigas encontrar este em papel, nas últimas folhas do caderno de Português) a seguinte máxima, em 1978:
“O erro dos poderes revolucionários é que para serem poder tem de travar a revolução. A cristalização da sociedade tem de ser efectuada, deixando ao povo apenas os signos e os ritos, ao mesmo tempo que compõem a estrutura de poder.
Os processos revolucionários são subvertidos por quem os cria e não pela reacção a estes. Ser revolucionário é criar as condições para que novas estruturas possam surgir e não tornar-se numa estrutura. Governo e revolucionário são uma contradição entre termos: um não pode ser associado a outro.”
Alguns dos meus receios confirmaram-se infelizmente, outros não. Na Europa, alguns países souberam tirar dividendos da liberdade, outros caíram num limbo social onde a corrupção, os expedientes e as máfias reinam e nem o aceno da Comunidade Europeia levará à ruptura com as lógicas de todo um conjunto de “underdogs” que vivia na franja do totalitarismo. Outros pulverizaram-se em guerras e genocídios, mostrando que a capa cultural da Europa mais não é do que uma fina película pronta a ser rasgada.
Em África, curiosamente os efeitos diluíram-se na realidade: não havendo governos que apoiem a tomada de poder, fornecendo armas, os opositores passaram a adquiri-las em mercado negro a troco de recursos naturais (diamantes, por exemplo) extraídos à custa da escravização das populações; não há corpo ideológico e ética de combate. Foram substituídas por drogas, crianças-soldado e lavagem ao cérebro para incutir o ódio puro e simples.
Mudaram-se as estruturas mas os efeitos são os mesmos.
Na América Latina, o aparecimento de governos populistas de conformação socialista resultaram em opções muito diversificadas: do capitalismo social do Brasil, ao socialismo totémico de Chavez, passando pelo ruralismo do Peru ou a fantasmagoria do passado da Argentina, há uma variedade de respostas cuja eficácia está por provar.
A Rússia desfaz-se dentro das suas fronteiras e a um czarismo sucedeu outro não muito diferente, apenas acrescenta a vertente de promover gente ligada às máfias a novos capitalistas; a China é uma iconografia do capitalismo do Sec. XIX que ninguém quer contrariar e neste momento uma afronta aos Direitos Humanos (que como tu sabes é aquela coisa que toda a gente acena enquanto varre o seu lixo para debaixo do tapete!).
Poder-se-ia crer que o fim das separações ideológicas e a progressiva normalização do mundo levariam a aproximação da humanidade.
Não levou.
Os pedreiros do muro que o deitaram abaixo em regozijo já construíram outros pelo mundo fora. E não vão ficar por aqui.
Se lamento o Muro ter caído? Não. Lamento é que mudou de sítio (s) e que separa de uma forma cada vez mais vincada ricos e pobres, que a diversidade do mundo foi substituída por uma ordem normalizadora, material, fascizante e empobrecedora, que a liberdade de informação e circulação de saber não tenham ganho à crescente intolerância e incompreensão, que a Liberdade e Democracia tenham apenas se transformado numa nomenclatura destituída de sentido e que as multinacionais se tornaram mais importantes que as nações, condicionando a vida dos países, a sua independência e crescimento.
Sinto que a Humanidade não está a progredir, está apenas a adaptar-se a algo hediondo e imoral. E quem se opõe e contesta é ejectado do sistema.
Confesso que a queda do muro não me provocou nenhum remorso ou euforia. Acho que é uma data importante para um país que se encontrava dividido, mas não considero que seja um acto de comunhão universal. Em certa medida, o mundo piorou muito por falta de oposição ideológica e porque à evolução material não correspondeu uma nova consciência integradora.
Neste sentido, foi uma alteração e não uma mudança.
Lamento J. que o meu “esquerdismo” não teça loas ao evento de top da Comunidade Económica Europeia e também lamento a todos os meus outros amigos de “esquerda” (assumida e sentida) que o fim do Bloco do Leste foi o Holocausto da luta de classes.
Lamento se considero as oligarquias comunistas aparelhos do que mais degradante se fez na politica, lamento que transformassem uma perspectiva ideológica moderna num sistema medieval, sem rei mas directamente com Deus no seu lugar. Lamento que a transição para uma sociedade sem classes tenha sido o instrumento de subjugação dos povos, das suas crenças e tradições e sobretudo lamento as mortes de opositores, suas famílias e até vizinhos para a sustentação de uma grandeza hipócrita e opressora.
Mas sobretudo o que lamento é a descrença que se produziu na ideologia e na capacidade do ser humano poder afirmar a sua individualidade, crenças e de agir colectivamente.
Como vês J. é muito triste não termos um lugar onde encostar a cabeça e descansar.
Espero que não fiques ofendido pela minha descrença num mundo novo que a queda do muro sugere.
Sabes que eu ando sempre atrás dos estupores dos pedreiros….
Grande abraço e um beijo à M.,
Vinhas
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