Pular para o conteúdo principal

As lições árabes

Para que todos os países ditos civilizados, modernos e de suposta tradição democrática tenham uma pequena noção de como serão as novas revoluções que derrubarão velhos e pretensiosos Estados.

Não acredito que o populismo faça escola, mesmo que empurrado por esta demente obsessão da comunicação social em continuar a fabricar uma realidade que difere do acontecimento.
Por princípio, as revoluções fazem-se para derrotar estruturas ditatoriais. Não quer isso dizer que qualquer confrangedor regime democrático onde se instala o nepotismo e o espírito corporativo auto-protector de grupos dominantes não possa ir pelo mesmo caminho.

Não basta pois ser um Estado moderno, bonitinho e arrumado. As populações têm de ser felizes, ter expectativas, sonhos e objectivos. Tem de acreditar que o seu esforço, empenhamento e participação representam algo para si e para o bem comum. A consciência de que todos temos um papel na comunidade e uma vivência partilhada crescerá à medida que a famigerada globalização económica nos tirar tudo, menos a inteligência.

O que se passa no Egipto e Tunísia é suficientemente importante para que o poder dominante reflicta sobre o que poderá acontecer se insistirem na contradição entre uma falsa liberdade, oportunidade e uma grandeza de imagens e fantasias, proporcionando, na verdade uma miserável e alienada realidade.

Mas mais importante que tudo, foi o formato e algumas das novas dimensões de uma revolução.

Sem ideologia determinada, sem activismos estruturados, sem instigadores formatados, a acção popular resultou e continuará a resultar em todos os países pela qual for atravessando, à excepção imediata do Irão, dado que aí ocorrerá por necessidade de afirmação da classe média e da laicização do regime, etapas ainda impossíveis, por várias razões, entre as quais a forma como são dominadas as forças armadas pela cúpula religiosa.
Em todos os outros países a revolta foi e será através do povo, do que passa fome, do que tem de subornar o político local para ter uma licença, do que tem de lidar com a sobrevivência quotidiana. Mas não é um povo indiscriminado. São os pais, os filhos, os familiares mais distantes e os vizinhos. São todos conhecidos. Há uma partilha de espaços, problemas e da falta de soluções. E foi desse quotidiano partilhado – os pais fazerem mais um sacrifício para que os filhos tenham formação digna que lhes permita ter um futuro e constatarem que estes ganharam aspirações que não tem reprodução na realidade – que surgiu a consciência de que “era preciso mudar”.

Não será esta a única razão. Não há causas únicas para fenómenos de massa. Tão pouco foi o infeliz sacrifício da imolação daquele jovem pai de família que deu origem a tudo. A originalidade da revolução tem a ver com isso. Não havia hipótese de previsão de uma comunhão de indignação se tornar numa oposição organizada.
Independentemente dos factores de combustão, da condução da revolta (sem liderança visível mas organizada) e dos efeitos futuros, há lições que podem servir para novos focos que aparecerão em toda a parte quando os povos estiverem maduros para a concretizar.

O que destaco nos pontos abaixo pode ter uma leitura mais complexa do que a que faço. É uma primeira visitação ao fenómeno. Espero que não seja a última.

1. Formação dos jovens: ambos os países possuem uma vasta população jovem e uma significativa percentagem de alfabetizados masculinos. Sabemos que para as mulheres, sobretudo nas zonas rurais, o ensino luta com a intolerância religiosa.
No entanto, a percepção social dos mais novos e a evolução da informação tem transformado e dado às mulheres a verdadeira consciência da sua posição e do valor do seu papel. Esta mudança do conhecimento, da utilização das novas tecnologias e da consciência, levou a que as mulheres fossem para à rua e valorizadas na luta conjunta.
Também se verifica a percepção de que a escola não representa a garantia de uma alternativa de trabalho futuro e de autonomização do núcleo familiar original. É uma das arestas da revolução. Foram os jovens quem primeiro saíram à rua, foi deles a organização e sacrifício humano. Será pois de toda a justiça que sejam considerados o motor das reivindicações futuras.

2. Pobreza: A pobreza urbana em cidades gigantescas é um fenómeno de degradação intensa. Existem os meios, estruturas e serviços. Existe o consumo, as oportunidades e o conforto. E a larga maioria dos cidadãos não pode ou consegue usufruir. É uma pobreza depressiva e que ofende não apenas as pessoas mas o próprio sentido de cidadania.
O Cairo tem mais de 8 milhões de habitantes que vivem com a imagem de um mundo moderno e ocidentalizado. Cerca de um terço desta população vive em pobreza extrema e a faixa dos que sobrevivem precariamente será igualmente enorme. Com o aumento do preço de bens alimentares e de consumo, a pressão social passa a linha do intolerável e a revolta também tem este combustível.

3. Regimes corruptos, autoritários e subservientes: Não nos alongaremos do que a tirania representa em grande parte dos países árabes no que se refere ao respeito pelos seus povos. Pior que o autoritarismo é o facto de serem regimes que se eternizam e são comandados por famílias de interesses com autorização tácita das Democracias Ocidentais para reprimirem desde que mantenham os interesses económicos em estabilidade.

4. Percepção do valor da Liberdade: A organização política dos povos surge pela consciência de que as sociedades se organizam para que todos tenham usufruto do que é posto em comum, para a defesa mútua e possam desenvolver a sua individualidade na compreensão de que todos têm um papel comum para a sua manutenção e fortalecimento. À medida que as sociedades se estruturaram na desigualdade, coerção e repressão, as pessoas desmobilizam-se do projecto comum e da sua responsabilidade. Todavia, o facto de estas sociedades ainda terem uma forte modulação familiar como referência, levou a que o papel colectivo e individual não fosse negligenciado. Vencido o medo e fruto da pressão quotidiana, veio ao de cima o que a humanidade tem de melhor: o desejo de liberdade e a consciência colectiva.

5. Laicismo e respeito pela religião: Em todo o movimento popular não se viu a invocação de mártires, bandeiras de fanatismo ou qualquer radicalismo omnipresente orientando o povo para a guerra santa com o Ocidente. Apenas existiram os necessários momentos de oração como habitualmente o fariam se estivessem noutro local ou situação. Só. Apenas o normal respeito pelas crenças.
Penso que esta atitude “descansou” o Ocidente quanto as reais intenções e objectivos da luta no Egipto (na Tunísia, o Ocidente nem teve tempo para pensar!). Melhor que tudo, este embrião de consciência colectiva de que existem assuntos da sociedade e assuntos de Deus e que não podemos resolver um com as lógicas do outro é a cisão que faltava no mundo árabe para que o Ocidente perceba que as pessoas são todas (de toda a parte deste pequeno e maltratado planeta!) iguais na essência: querem viver, dar o melhor possível aos seus e viver em paz com todos.

6. Novas tecnologias e comunicação: Uma das chaves do que pode ser a machada no funcionamento auto protector das classes dominantes. A circulação livre da informação, da palavra e da imagem. O podermos receber com uma hora ou menos de diferença a última imagem do combate, o podermos passar informação para fora de mensagem em mensagem, gravar o clip da repressão extrema, passa-la por bluetouth de telemóvel em telemóvel até uma zona de fronteira onde a net não está condicionada e, a partir daí para outro país onde outras pessoas desconhecidas colocam no You Tube é a machadada final na medíocre capa do autoritarismo.
Cada vez que a Europa fala em controlo da Internet há um arrepio de fim do mundo que percorre todos os meus medos. É fundamental que a net seja o espaço de liberdade e nova base de formação que é. Se possível inclusivamente melhorar as formas de evitar que os Estados tenham todo e qualquer controlo sobre o seu funcionamento.

É através dela que milhões de jovens iranianos, sauditas, venezuelanos e tantos outros conseguem fazer chegar a toda a parte o que se passa e, muitas vezes, o que a oficial comunicação social não quer mostrar.

7. Maturidade das forças armadas: Também as Forças Armadas jogaram um papel fundamental. Não sei de onde partiu a posição de que os soldados em nenhuma circunstância disparariam sobre as populações. Provavelmente as altas patentes devem ter percebido que os soldados e as patentes executivas intermédias tinham os seus familiares nas revoltas e que não iriam dar ordem para disparar contra os seus pais, irmãos e vizinhos. Fosse como fosse, as forças no terreno cumpriram o seu papel de estar ao serviço do povo e não do poder de Estado, o que é uma ideia e conceito um pouco pervertido neste mundo actual.

8. Sentido revolucionário: O que caracteriza esta revolução? A originalidade. A rejeição de uma estrutura organizativa, ideológica e de recrutamento de oprimidos.
Foi uma revolução de família. Nos protestos estavam pais, mães, filhos e irmãos. Estavam os vizinhos e os amigos dos primos.
O seu ideário era nuclear: nada de amanhãs que cantam, nada de fé cega, nem sinal de uma parafernália sindical. Apenas um intróito: remover o ditador. E a crença de que, ao retirá-lo, os restantes males, passo a passo, seriam alterados.
Esta revolução de ideia chave, personalizada e sem desvarios reivindicativos representa uma ideia popular que permite recrutar de forma alargada e indiscriminada: na Praça, estiveram o povo que passa fome e pequenos empresários, desempregados e lojistas, mães que seguem a sharia e filhas ocidentalizadas.
Claro que dentro deste núcleo central existiram visões e exigências específicas. Mas o que o unia o povo era este core: Bem Ali e Mubarak tinham de partir.

Depois, a invocação do dever patriótico de intervir não um nacionalismo serôdio. As bandeiras nacionais são a o símbolo do que os une e não uma atoarda de fanatismo. A comunidade tinha um radical comum e um símbolo: a partida do ditador e a bandeira do país.
Temos pois um modelo original: um movimento patriótico e não nacionalista, interclassista sem perder a dimensão das diferenças centrado numa prioridade consciente da diversidade da mudança.

Depois, o sentido cívico dos manifestantes e da demonstração do seu apreço pelo património comum. O vandalismo que existiu deve-se a Mubarak e aos esbirros contratados para descredibilizar o povo.

Ter milhões de pessoas em todo o país a ocupar espaços urbanos poderia ser uma tortura logística e sanitária. Não o foi. Os manifestantes, ordeiramente, auto organizaram-se, dentro destes os especialistas voluntariaram-se. Houve recolha de fundos para alimentação e água. As mesquitas, cumprindo o papel de qualquer organização religiosa de defender os oprimidos e injustiçados, abriram as suas portas para ser hospital, dormitório e instalação sanitária.

As mulheres estiveram ao lado dos homens como iguais. Desde a mais ocidentalizada até a que trazia burka, invocaram o direito igual de se opor e querer mudar o seu estatuto. Tudo isso sem prejudicar o património comum, sem destruição inútil e sem violência.
Só isso, para mim seria já uma revolução. Resistir a provocação, a desinformação e ao descrédito sem desmobilizar, sem deixar de acreditar. Sem medo.

Houve sacrifícios, mas as verdadeiras mudanças, as que contam, obrigam ao sacrifício. Infelizmente será sempre inevitável quando o poder fraco de muitos se confronta com o farto poder de uns poucos.

Outro factor relevante foi a pré-consciência da necessidade de uma nova forma de Democracia, de intervenção directa e escrutinadora.
Na própria praça, em meio ao conflito e aos receios sobre o que se vivia, inventariavam-se as mudanças e a forma de as controlar. A invocação da Democracia e da participação directa na lista de aspectos a mudar (algumas dessas listas, de uma clareza infinita e com indicações concretas do que, quando e como, sem aquelas balelas de “caderno de intenções”).
Esta urgência pressentida de que não basta ter uma democracia partidária que deixa rédea solta aos seus representantes e de que as lideranças têm de ser controladas, ainda que tal tarefa represente uma intuição, augura que possamos estar a assistir não apenas a uma mudança no mundo árabe, mas também na forma de concretizar a regulação política dos nossos representantes.



E foi por aí que ganharam o apreço e simpatia do mundo e confesso, uma certa inveja. São povos como estes que sustentam a frágil esperança de que a humanidade poderá perceber que é preciso e possível mudar.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Dos governos minoritários e maiorias absolutistas

Na óptica dos partidos mais votados em Portugal, a governação em situação minoritária ou de coligação é inviável. A ideia de um pequeno partido poder influenciar, propor e monitorar o comportamento aberrante dos partidos centrais é uma situação intolerável para estas máquinas de colocação de militantes e de controlo de investimentos privados. Acenam com o caos, a ingovernabilidade e o piorar da situação do país. Esquecem que o país caminhou para o fundo do abismo pela mão de ambos. Não por uma inépcia ou incapacidade das suas figuras, mas por dependência de quem os financia, de quem os povoa e da impossível subversão ao sistema corporativo vigente. Sócrates afrontou algumas destas entidades instaladas e vive a antropofagia quotidiana dos jornais e televisões e – vejam lá – ele não é um perigoso extremista, até porque o seu partido chutou soberanamente João Cravinho para canto, mais os seus amoques contra a corrupção. Se a memória não me falha Ferreira Leite foi a Ministra que teve a pe

Balanço e Contas: 2 anos de governação

Ao fim de 2 exaustivos anos de governação importa fazer uma reflexão não sobre os atos do governo mas sim sobre o comportamento da sociedade em geral relativamente ao que se está a passar. Para faze-lo, importa ter presente algumas premissas que a comunicação social e as pessoas em geral insistem em negligenciar e a fingir ignorantemente que não são as traves mestras do comportamento governativo: 1. Este governo não governa para os portugueses nem para os seus eleitores; 2. Este governo não pretende implementar qualquer modelo económico. Pretende apenas criar a rutura necessária à implantação de um; 3. A sua intervenção orienta-se por uma falsa perceção de que a sociedade portuguesa entrou em rutura com o socialismo e as conquistas sociais do 25 de Abril; 4. Para agradar credores e cair no goto do sistema financeiro que irá propiciar empregos futuros a quem for mais bandalho com o seu país, usou o medo para tornar a mudança incontornável, culpando e responsabilizan