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Desistir de Portugal

Tenho tentado evitar comentar o óbvio e seguir contra o impulso da blogosfera no que diz respeito aos acontecimentos. Tenho resistido a ser mais um a fazer o já conhecido efeito multiplicador do comentário indignado que por vezes não o é: servem para instrumentalizar e legitimar o que poderá ser.

A política portuguesa está envolvida em epifenómenos para os quais é preciso criar o antidoto. Só que este antídoto passa por valores, coisa que se perdeu algures no alcatrão das autoestradas, na morte da agricultura e na deificação do dinheiro fácil para legitimar mentiras ou colorir imagens de gente de alma negra. O antídoto seria uma imprensa livre, seria a indignação geral, seria os homens terem a dignidade de perceber que uma democracia formal não é uma democracia de direito. Um simulacro de eleições não é participação cívica, um governo não é mandatado para decidir para além da administração da coisa pública e as políticas que envolvem implicações futuras ou são objeto de consenso largo e interpartidário ou sujeitas a referendo.

Para esta democracia de arranjo não contribuo. Antes a revolução, antes o combate rua a rua. Hitler também ganhou em eleições “legítimas” e nem por isso não faltou gente que preferiria a anarquia desabrida da guerra civil.

Mas não! O modelo de comentário político a partir do qual se desenvolve a estratégia de implementação da repressão do próprio poder (ou a exclusão dos direitos sociais) encontra uma reprodução síncrona na blogosfera e por vezes reprodutiva e reforçadora da imprensa “oficial”. Basta invocar sequencialmente a falência de uma série de direitos a uma ritmo quase diário para as pessoas reforçarem a indulgência da primeira perda. E comenta-se indolentemente um a um, tornando cada um deles um caso, quando a matéria que se muda não é o fato, não é o aspeto específico: é todo o conjunto de direitos sociais que serão cumulativamente retirados e espezinhados por ordem do patrão externo deste país. E é isso que não é tolerável.

Uma coisa é pedirem-me para comer uma vez por dia em troca da soberania e independência; outra é despojarem-me de tudo e, no final, os novos patrões dizerem que, afinal, o fato de ter nascido no meu país não me dá o direito simples de viver nele, de possuir terra, família, casa, etc. E é precisamente aí que se está a chegar, legitimado pelas carcaças intelectuais deste país sem lei

O modelo é sempre o mesmo: primeiro a imprensa “oficial” faz passar através dos amanuenses da redação a indicação do provável fim de um direito conquistado. Há um chorrilho de comentários levianos e mal educados, descarregando o fel dos que nunca se moverão na sua indignação para mais longe do que as teclas do computador. Depois, alarga-se o frémito opinativo passivo (os comentadores de jornais, os twiters e FB’s colam a noticia e reproduzem-na ao limite da repetição. A indignação generalizada é só isso mesmo: Repetição / indignação / esgotamento / aplicação/reatividade contida e localizada.

O significado do poder, ou seja, a dominação da consciência perpetrada através de uma reflexão centrada na parcimoniosa fatia de conhecimento que nos é dada (e sob a qual se concede o delírio da reflexão, da presunção do conhecimento, da calúnia ou da anedota) transforma as formas de envolvimento em atos emotivos e estéreis. Ou seja: são um auxiliar da menoridade massificada, uma tentativa de colorir um caminho que não desejamos mas que já vemos como inevitável.

A rejeição da proposta (ou melhor da instigação) provoca a reprodução do antagonismo assente na mesma linguagem, no mesmo ethos e nos mesmos pressupostos. Mais divertidos ou mais intelectualizados, com mais estilo de crónica ou doutrinas de ciência política, mais desabafo, menos desabafo tudo ronda a crença de que a solução pode existir no erro (aceitação/oposição da premissa lançada). Não existe oposição social e a inexistência (por incapacidade ou impedimento repressivo) da emergência de um outro discurso ou modelo transforma-se na sobrevivência da repetição. E é isto de que vivem as pessoas à volta do fenómeno político, é disso que se alimenta e perpetua a dominação incongruente mas necessária à “ordem”. Mudar é um desafio revolucionário e ninguém é contra a linguagem do poder.

E no entanto, mudar é dizer não. É simples e dolorosamente difícil. Mudar é não aceitar um modelo, mesmo sem uma alternativa coerente a propor e aceitar a frenética luta entre o processo de recusa (chamemos imperfeitamente de “revolução”) e o perpétuo movimento de recompor a ordem mais ou menos como era “nos bons tempos” mesmo que com outros figurantes.Mudar é um sacrifício gigantesco. Porque o que se muda não é apenas o que está à volta. Somos nós que temos de mudar para que a mudança possa ter lugar. Enfrentar o medo de não ter, não saber, não ter lugar; medo de não saber se a pessoa que está ao meu lado é meu amigo ou espião, medo de perder o que conquistei materialmente, medo de sacrificar os meus numa guerra em que ao mudar os que são meus deixam de me pertencer.

Mudar é alienar o próprio passado e assumir que o futuro não tem lugar. Mudar é saber que não há amanhã por princípio. Mudar é abdicar do trono de um reino imaginário em que pensamos existir, viver da coleta maltrapilho e esfaimado, a provar a veracidade da loucura, porque a doença é não pertencer e só depois de estarmos doentes e sermos perigosos para a normalidade pública é que nos tornamos uma ameaça verdadeira. Quando combatemos, lutamos mais ou menos violentamente para ocupar a estrutura já existente, num processo delirante mas curto; quando enlouquecemos quebramos os elos porque já não queremos o lugar de ninguém, não pertencemos a nada, não temos nada, não produzimos nada. Somos a cauda da hidra, a parte do corpo que recusa a ideia de existir mais que uma cabeça.

É este tipo de abandono pré-cristão que não é possível. Porque? Porque foi-nos instilado desde a conceção os vírus que nos condicionam o funcionamento regular da vida: a linguagem, o desejo e a posse. Esta tríade infame pela qual, desejamos, ostentamos e comunicamos representa todo o movimento de aceitação da “normalidade”.

Sem mais caminhos, Portugal morrerá. Morrerá de fome, de necessidade, de vinganças que já não serão revoltas, de um genocídio que não terá perdão. O que restar será outra coisa na qual ninguém se reconhecerá.

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