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O Fim da História? - a expressão de algumas dúvidas

Hegel acreditava que o fim da história chegara com as Revoluções Americana e Francesa, por terem preenchido o desejo de reconhecimento que movia a humanidade (desejo esse preenchido pela ideia de que todos os homens são iguais e devem, como tal, ser considerados cidadãos). Já Marx, outro teórico do fim da história, entendia que o móbil da história era a luta de classes e não o mero desejo de reconhecimento, como tal, o fim da história seria atingido pela utopia comunista. Ora a queda do muro de Berlim e o declínio do comunismo como sistema alternativo colocaram na ordem do dia a ideia de que as democracias ocidentais baseadas no primado dos direitos humanos seriam o fim da história, no sentido hegeliano e marxista de ter sido encontrado o sistema perfeito, a ordem social racional capaz de satisfazer os mais profundos e legítimos anseios do homem - daí que em 1989, Francis Fukuyama declare alegremente estar finda a história uma vez que se encontrara o tal sistema perfeito, a democracia ocidental fundamentada no respeito pelos direitos humanos, usando como ferramenta o sistema económico capitalista por sua vez, alicerçado na ciência e tecnologia modernas - melhor é impossível. A juntar à queda dos regimes comunistas na Europa, o sucesso de algumas economias emergentes, nomeadamente na Ásia, é visto como mais uma prova do sucesso da economia de mercado daí se retirando a conclusão de que todas as sociedades experimentariam um desenvolvimento análogo bastando para tanto deixar as suas populações prosseguir livremente os seus interesses materiais. Será?

Parece-me que, de alguma maneira, há aqui algumas questões que não estão resolvidas, efectivamente este sistema é excelente no que respeita à acumulação de riqueza, mas tem revelado péssimos resultados na sua redistribuição o que cria problemas se considerado como ferramenta de pluralismo, simplesmente porque a sua lógica não é essa, é antes uma forma de selecção dos mais competitivos. Se atendermos a que a economia é, ou deve ser, uma ferramenta ao serviço da humanidade, é bom de ver que o mercado por si só vai prestar um serviço deficiente - vai gerar segregação. De facto não me parece que possamos falar em fim da história quando temos um mundo ocidental desenvolvido a viver dos recursos dum terceiro mundo cada vez mais empobrecido, e é expectável que estes povos não tenham paciência de esperar que o desenvolvimento chegue "naturalmente" pela via da abundância generalizada gerada pela livre iniciativa aliada ao desenvolvimento tecnológico. Não podemos ignorar que, para não violar as normas ambientais europeias, uma grande empresa deslocaliza-se, instala-se num país pobre, e aí destrói o ambiente impunemente, é verdade que cria emprego a pessoas que podem melhorar ligeiramente o seu estilo de vida, mas para começar paga menos, não assume garantias sociais, portanto acumula e não redistribui, destruindo ainda os recursos que, deixando de existir, ditarão a procura pela empresa de outras paragens para se instalar - péssimo negócio para o país pobre - este é um mero exemplo de um resultado obtido pelo modelo ocidental, modelo a seguir não é?
E mais, parece-me que, entre as questões escamoteadas, estão desde logo as colocadas pela globalização, a pressão exercida pelas tais economias emergentes, cujas garantias sociais não apresentam os custos daquelas inseridas no sistema social europeu, por exemplo, acabam por exercer uma pressão económica sobre este de forma a poder dizer-se que está em crise. Aliás a tentativa desesperada de reacção europeia tem levado a algumas medidas proteccionistas questionáveis (veja-se o caso das lâmpadas de baixo consumo chinesas cujo preço é inflacionado
para impedir que concorram directamente com as da alemã Osram, e nem o benefício ambiental que trariam as lâmpadas de baixo consumo mais baratas, impediu que se olhasse ao perigo que constituía por a Osram em situação de perda de mercado), por outro lado o acentuar das características "agressivas" do mercado livre, tem levando a Europa a questionar não apenas o seu sistema de protecção social como a secundarizar os direitos, económicos sociais e culturais que, mesmo dentro da esquerda europeia, parecem ser encarados como direitos que devem ser devolvidos à competência de cada indivíduo para a sua realização, limitando-se o Estado a ser um polícia. Cada vez mais se vê reacções adversas à mediação estatal como forma de garantir redistribuição da riqueza e até de garantir que, dentro das suas fronteiras, os cidadãos tenham condições de dignidade - o que, a prazo, trará mais problemas sociais e de segurança, pedindo mais polícia.

Depois, a euforia acerca deste sistema, faz com que hoje se coloque o problema de não haver ideologias, porque curiosamente o aparente triunfo de uma ideologia trouxe a ausência de ideologias, ninguém sabe muito bem o que se pretende do sistema social personalizado no Estado. Pretende-se menos estado e mais iniciativa privada e livre mercado, mas simultaneamente deseja-se um estado securitário que nos proteja do outro, o outro que se sente excluído do nosso bem-estar e que nos quer mal, e como receamos esse outro esquecemos mesmo alguns pontos basilares do nosso sistema, o direito à privacidade e a liberdade de expressão estão hoje em risco, mas não são os únicos. É claro que o ambiente que se vive é pantanoso, daí que se assista a vozes da direita a solicitar do estado medidas proteccionistas para negócios específicos - veja-se, em Portugal, a prestação da SIC e da TVI exigindo do governo que não abra mais uma licença de canal aberto porque o mercado publicitário não o permite (???), mas então não é o mercado que o deve decidir ditando a falência do concorrente mais fraco?

Assistimos hoje a governos de esquerda que assinam políticas de direita, adaptando-se ao mercado, tornando-se "competitivos", tudo menos por em causa o mercado - mesmo nos pontos em que ele cria injustiças? E será que não há bens não patrimoniais (culturais, ambientais, antropológicos, de biodiversidade) cuja avaliação não é feita? Será que a ferramenta até podia funcionar melhor mas a sua utilização é deficiente?Acreditando eu, que este modelo tem a capacidade de gerar igualdade (um dia, porque mesmo entre nós, civilização ocidental, convenhamos, o sistema de direitos humanos é meramente formal), não deixo de pensar que também seria bom admitirmos que não somos superiores ou mais evoluídos por isso (embora actuemos internacionalmente com desmedida arrogância), continuamos a cometer os mesmos erros vezes sem conta, somos simplesmente humanos, e podemos aprender, por exemplo com uma civilização índia que, em relação à gestão de recursos, postula que uma geração não pode gastar recursos de forma a comprometer os recursos disponíveis para a geração seguinte.
E os direitos económicos, sociais e culturais, não são eles inerentes à dignidade humana? Então com que legitimidade são vistos hoje como secundários? Não estaremos a andar para trás? Sim, se por causa do sistema económico começamos a por em causa os próprios direitos que fundamentam o nosso sistema, isto não será ditar o fim desse mesmo sistema?

Mas afinal, a economia é uma ferramenta para o bem-estar humano ou o a sociedade humana deve servir a economia?

Com tanta questão para resolver, poderemos falar de fim da história?

Comentários

vinhas disse…
“Todos os anos cerca de 18 milhões de pessoas (50 mil por dia) morrem por razões relacionadas com a pobreza, sendo a maioria mulheres e crianças. Todos os anos cerca de 11 milhões de crianças morrem antes de completarem 5 anos. 1 bilhão e 100 milhões de pessoas, cerca de um sexto da humanidade, vive com menos de 1 dólar por dia. Mais de 800 milhões de pessoas estão subnutridas”.(fonte: wikipedia) . Esta é a história que n~
ao tem fim! O resto são histórias para adormecer.
Helena Henriques disse…
De facto... trata-se mais de uma história sem fim.

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