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"Antes de começar o trabalho de modificar o mundo, dê três voltas dentro de sua casa (proverbio chines)."

A posição oficial do governo brasileiro face à China é compreensível mas não aceitável.
Um país que viveu uma ditadura, que alcançou a democracia, elegendo um homem de esquerda que deveria reconhecer melhor do que ninguém o significado da repressão, não pode esgotar-se unicamente no gigantismo da relação económica entre ambos. Será por uma mera questão comercial? Convido a todos a uma visita ao site da Câmara do Comercio sino-brasileira para perceber a dimensão económica da questão.
É positivo o investimento do Brasil na relação com a China e Índia como forma de dar voz a uma fatia gigantesca da população mundial, ao poder que representaria no combate à globalização e exploração do 3º Mundo e a utilidade de um contraponto activo das maiores economias emergentes.
Todavia para que isso ocorra seria necessário que a China desse passos fundamentais para os quais não está preparada: democratização do regime, direito de opinião e oposição, liberdade de imprensa e organização, direitos humanos e humanização penal. Não podemos esquecer de que, para além do Tibete, a repressão e violência económica exercida sobre o povo chinês é tão grave ou mesmo pior do que as das regiões provinciais
É um fosso muito grande, mesmo para as imperfeições das democracias brasileira e indiana.
Sabemos que a China quando se move é por grandes passos. De sociedade feudal, para regime revolucionário; de plano quinquenal para capitalismo sem freio, nunca operando movimentos graduais e consolidados. Tudo o que muda na China é um processo equivalente aos golpes de artes marciais: duros, implacáveis e violentos.
Nesta circunstância, não seria o Brasil a conseguir um compromisso aceitável relativamente ao Tibete. Isso não é possível a nenhuma nação do mundo. Não fosse a economia, a China seria como a actual Coreia do Norte. Nota-se em todos os aspectos que dizem respeito a diplomacia (nome simpático para a intransigência!).
A China nunca permitirá uma influência exógena ao seu caminho. Se exisitr ameaça nas suas fronteiras estabelecerá uma guerra de terror, governos fantoches ou invadirá sem hesitações tudo o que se poderá dizer na comunidade internacional. Já o fez em 1962 com a Índia que não é uma potência menor. Os pequenos estados que orlam a China saídos do fim da União Soviética e o eventual perigo que representa a presença radical islâmica é um problema que a China resolverá implacavelmente e a seu tempo, se necessário.
Mas porque então o Brasil não jogou a sua influência numa imagem mais coerente com o mundo ocidental? É ou não a sociedade brasileira alicerçada em valores humanistas? Poderia o Brasil não ter afoitamente apoiado a China e jogado o “terrain vague” da política, como a Europa, onde os governos timidamente vão dizendo Direitos Humanos sim, mas aquilo é desporto, não vamos nos chatear agora.
Julgo que não seria possível.
As relações diplomáticas com a China datam já do tempo anterior à ditadura militar brasileira e foi corporizada durante esta. No início dos anos 60, o então Presidente João Goulart realizou uma viagem à China (muito antes de Nixon “desbloquear” o processo chinês) para implementar acordos comerciais. Em 1964, a ditadura militar ditou um retrocesso mas ainda durante a sua vigência, em 1974 com Geisel e com o Brasil em estertor económico, retomam-se os contactos pela mão do Chanceler Azeredo da Silveira que, em discurso produzido neste encontro, sintetiza o paradigma das relações sino-brasileira e o fundamento da relação:
“Nossos governos têm enfoques distintos para a condução dos seus respectivos estilos nacionais. Ambos consideram, no entanto, que é um direito inalienável de cada povo, o de escolher o seu próprio destino. O que é fundamental sim é que, nas suas relações internacionais, os governos estejam dispostos a, efetivamente, respeitar esse direito. O Brasil e a República Popular da China convergem nesse propósito, fundamos nosso relacionamento nos princípios do respeito mútuo à soberania e de não-intervenção nos assuntos internos do outro país. Esses são os alicerces da nossa amizade”. A resposta chinesa neste encontro coube a Chen Chien, que completa a linha estrutural da relação entre os dois países:
“Não é mera coincidência que assim seja; constitui o comércio também veículo para o entendimento entre as nações. Estamos certos que esse também será o caso entre as nossas nações. Mas, vimos com satisfação que temos pontos comuns em vários aspectos. A China e o Brasil, como países em vias de desenvolvimento, defrontam-se com a mesma tarefa de salvaguardar a independência e a soberania nacionais, desenvolver a economia nacional e lutar contra a política de força das superpotências”.

Ora, esta coluna central traçada em 1974 encaixa como uma luva na vertente ideológica do partido de Lula e, simultaneamente nas necessidades estratégicas do Brasil que ao lado da China e da Índia tornam-se metade do mundo em termos populacionais e uma potencia não desprezível do ponto de vista económico e militar.

Não sendo assim uma questão exclusivamente comercial e sim diplomática e estratégica, o apoio frontal do Brasil à China apenas se torna preocupante no domínio da coerência interna, onde continuo a achar que o Brasil poderia ser mais pró-activo na questão do Tibete. Se a chama olímpica passasse no Rio ou S. Paulo teríamos as mesmas ondas de contestação de Paris ou S. Francisco, por mais limpeza e desinformação que surgisse à volta do Dalai Lama.
Porque o Brasil é um país Ocidental e que apesar da sua democracia ainda em consolidação, consegue perceber e distinguir a árvore da floresta.

Fonte: Relatório do seminário Alianças Estratégicas para o Brasil: China e Índia, Brasília 2006, Edição da Secretaria de Acompanhamento e Estudos Institucionais, comunicação “Uma visão brasileira da China”, pelo Professor Severino Bezerra Cabral Filho.

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