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Dona Crise

Gostava de vos apresentar uma tia muito velhinha que faz parte da família: Chama-se Dona Crise.

Ao que julgo tem mais de cem anos e não sei ao certo se alguma vez, depois da primeira visita, nos deixou verdadeiramente. Confesso que houve um ano ou outro nem nos apercebemos que esteve sempre connosco. Mas foi uma ilusão.

Como normal das famílias, quando aparece, fá-lo na pior altura e traz sempre companhia consigo. Desde que há memória, a Dona Crise vem sempre acompanhada pelo primo Recessão e o primo Inflação e, o mais temido de todos, este puto reguila que destrói tudo: o menino Juros.

Como se tratasse de um exército em acção de conquista, instalam-se na nossa vida, nas nossas casas e parecem que vão ficar para sempre. E não nos deixam dormir com o ruído que fazem, a ver quem tem mais importância. À custa do ruído que provocam não nos deixam ir de férias, trocar de carro ou simplesmente comer.

Cada vez que a Dona Crise se instala em casa, ficamos a assistir as intermináveis discussões se é por causa do primo Inflação ou do primo Recessão a culpa de tanta dificuldade, pobreza e miséria. Passam a vida a discutir, enquanto o insuportável e incontrolável menino Juros vai comendo e crescendo…

A primeira memória que tenho dela data de 1973, altura em que vinha um senhor falar à televisão a preto e branco dos inconvenientes da omnipresença da Dona Crise, causada por factores externos como o preço do petróleo, etc., etc. Já nessa altura os ricos eram ricos e perdiam num lado e ganhavam noutro. E para ver se convencíamos a velhota a ir embora, tínhamos de trabalhar mais por menos dinheiro, fazer sacrifícios, etc., etc.

Já nessa altura esta tia era feia e velha, os primos falavam alto e agitavam-se e o sempre menino Inflação comia que se fartava.

É verdade. Esta família indesejável nunca nos deixou. O que aconteceu durante algum tempo foi que um parente distante, o tio Comunidade, patriarca prepotente e magnânimo que manda em todas as famílias e casas da Europa, deu-nos uns dinheirinhos que rapidamente fizemos desaparecer em pequenos luxos (e grandes também!) que renderam bastante a alguns e criou a ilusão, pelo fluxo de capitais, que a velha se tinha ido embora e que agora sim poderíamos descansar desta família horrorosa.

Depois da última estadia da Dona Crise nos anos oitenta ela acabou por ficar por aí passeando, volta e meia telefonando a ameaçar que ia passar connosco a Páscoa ou o Natal, ou se calhar a próxima década.

Os primos sempre com a velha e o menino também. Este até teve uma fase que, à custa do Ritalin e das consultas do Banco Europeu, até se portava bem, estava a ficar educado.

O Tio Recessão andava cabisbaixo mas consciente de que o seu dia havia de chegar, muito à custa da fantasia de economias assentes na criação de …nada. Também o primo Inflação andava tímido, mas não cabia em si de contente quando a "bolha especulativa" rebentou e ele ficou outro, que aquilo era um mal que crescia, crescia mas que se previa que iria resolver-se pelas "leis do mercado". Ora, a felicidade dos tios é a felicidade do menino Juros, que agora não para de comer. Até na ancestral casa dos Impostos esse menino come!

E são estas fragilidades do Capitalismo, o meio de transporte favorito da dona Crise e seus acólitos. E depois lá vem eles outra vez! Sempre a fazer o mesmo mal aos mesmos e por mais que se persista no erro, aceitamo-lo sempre.

A emergência de uma nova ordem mundial não assente nos desígnios do G7 mas sim nos G193 começa a ser por demais evidente e creio bem que isto acontecerá a bem ou a mal.

Neste meio tempo, lá teremos de viver com a família que temos, acreditando que eles pelo menos se calem daqui a uns 10 anos, hipotecando novamente gerações, matando milhões à fome, aumentando os argumentos de terroristas e outros radicais livres.


Esperemos pois que o menino Inflação não venha a ter problemas de obesidade…

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