As intenções políticas são, a maior parte das vezes, exercícios de contradição. São pretensões a que falta uma coerência primordial, destituídas de racionalidade, radicadas numa profunda voz social imediatista, cuja identidade é construída no medo. E o medo é o primeiro sentimento humano, o mais perverso e a base de toda a intolerância. O medo é a marca primitiva da humanidade.
Quando Obama definiu no quadro político da sua eleição encerrar Guantánamo, situou-se no plano de um estadista que reconhece que o incumprimento dos Direitos Humanos tão propalados e exortados como bandeira política de muitas intervenções (justas ou injustas) são uma mácula na política americana e um afundamento do argumento moral do Ocidente. Todavia, as intenções políticas que se seguiram, reduziram-no a um político vulgar, receoso que uma amnistia pudesse representar um recuo eleitoral do seu flanco mais conservador, correndo sérios riscos de poder ser violentamente acusado de traidor no caso de a América sofrer um ataque terrorista. Foram as intenções políticas e o medo que empurraram Obama para uma área ambígua.
Numa visão antropológica, Guantánamo não está longe da primitiva apropriação dos guerreiros adversários como despojos de guerra. São o simbólico ritual de “posse das almas”, da desvalorização da cultura derrotada e práticas rituais; da “desclassificação do Outro”. Sendo estes os vencidos, os fracos não os toleramos porque queriam os nossos terrenos de caça, mulheres ou expandir-se. E por “existirem de uma maneira estranha” (Deus, língua, roupa e quotidiano).Essa diferença legitima ritualizações da dominação, desde a antropofagia à escravatura, desde a violação a tortura, desde a humilhação até os testes “científicos” experimentais da existência do “diferente”.
Admitindo que os Estados Unidos tenham saído da Idade da Pedra e que as Leis são a interdição necessária à corporização da Ordem, a visão contemporânea de um centro prisional de guerra, onde os presos não são julgados e limitado o seu acesso aos meios de justiça, que são sujeitos a tortura para obtenção de informações (assumindo no limite mais extremo da nossa cultura que esta seja uma prática legítima, ao fim de 10 anos já devem ter extraído o que havia para saber!), que os presos apenas o são por “estarem” ou “serem”, representa o limite extremo da intolerância e da nossa condição humana enquanto cultura e corporiza o perigoso horizonte do extremismo (que curiosamente visa combater!) e intolerância que se pode virar depois para outros grupos minoritários ou não.
Os interditos sociais, as crenças e as leis foram criados pelas sociedades para retirar o humano da irracionalidade. Todavia estamos mais próximos do “homem das cavernas” do que julgamos e os nossos medos primitivos vem ao de cima sempre que não conseguimos controlar as circunstâncias da vida. Inventamos rituais mágicos e objetos de segurança. Mas quando tudo falha, voltamos as práticas da irracionalidade e tentamos legitima-las com o mesmo arsenal que serve para nos impedir de regressar a barbárie.
Por esta razão, Guantánamo é o maior insulto à cultura Ocidental perpetrado pelo homem, maior mesmo que o Nazismo.
E antes que me cozinhem num qualquer auto de fé explico: o Séc. XXI tem a abundância, a riqueza, comunicação e conhecimento como nenhum outro século da história. Toda a humanidade poderia viver numa base de conforto e estabilidade se a distribuição da riqueza, propriedade e recursos fosse ajustada e democraticamente gerida. Salvo catástrofes naturais, teríamos apenas de controlar a demografia. Nunca existiu uma visão tão clara dessa possibilidade e talvez por isso afastamo-nos cada vez mais dessa realização. Pelo contrário, o mundo corre atrás de um fim delirante de controlo, domínio e subjugação de uma escala absolutamente impensável, mesmo no tempo das ideologias.
Perante a dimensão de dominação que ora se monta, no meu ponto de vista, o Nazismo não passa de uma excrescência alemã a uma guerra perdida e só existiu porque deixamos de nos importar com o destino dos outros, permitindo atropelos aos Direitos de minorias (Judeus, Ciganos, eslavos, etc.), a permitir que o ódio, a violência e a repressão fossem toleradas a troco de relações comerciais, ignorando a repressão e invasão de países pequenos numa falsa diplomacia de “deixa andar”…
Já estão a ver onde quero chegar!
Comentários