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Privatização das cidades, globalização e o fim da cidadania

Desde o início dos anos 90 verifica-se que corporações e grupos privados tentam monopolizar as cidades. Este trabalho de aquisição do espaço urbano tem vindo gradualmente a abarcar inúmeras vertentes, sempre através de um processo de conivência com o poder político.
Num processo global que já se verificou em alguns espaços urbanos americanos (pequenas cidades já são pertença de corporações com actividade política meramente de verificação dos cumprimentos contratuais) e com materializações mais ou menos avançadas em diversos pontos do globo, permite-nos antever o que será o futuro da cidadania se este processo não for travado (ou se quiserem, se o ritmo de desenvolvimento de uma consciência social sobre o verdadeiro significado da globalização não for acelerado
Em primeiro lugar, os fundamentos.
Durante anos, a noção de serviço público de base foi compreendida como uma obrigação de entidades do poder local ou de empresas estatizadas. Havia um consenso geral por duas ordens de razões:
• -o serviço público não dá lucro: a qualidade e abrangência do que representa faziam com que a qualidade da prestação não oferecesse uma margem de lucro tentadora. Por outro lado, estes serviços municipalizados eram estruturas fortemente sindicalizadas e implantadas no meio urbano, pelo que a ideia do seu aproveitamento privado motivava pouquíssimo.
• -garantia às populações: de uma forma mais ou menos compreendida, os serviços prestados eram entendidos como pertencentes às populações. A água, o saneamento, a limpeza, o arranjo do espaço urbano são matérias com as quais o cidadão sentia que, independentemente da qualidade, pertenciam ao conjunto das pessoas e não passava pela cabeça de ninguém fazer negócio com a água, o saneamento, o lixo etc.

A inovação tecnológica e a homogeneização do espaço internacional que emergiram da Guerra Fria e que foi tomado não como uma vitória das Democracias mas sim do Capitalismo, gerou um processo económico em que tudo se transformou em bem ou serviço, acelerando o processo global das economias agora livres de espartilhos ideológicos, tomando de assalto as nações recém -libertadas, introduzindo o consumo como a nova referência.
Com o crescimento de grupos económicos e empresas para um cenário de escala global, as pequenas economias e empresas de escala limitada são a pouco e pouco absorvidas e o "negócio" passa a ser "transaccionado entre Estados", ora deslocando empresas produtoras em função dos benefícios fiscais de países economicamente frágeis, ora seduzindo e comprando políticos sem escrúpulos para a exploração deste ou daquele recurso.
Os pequenos negócios que não são absorvidos entram em falência ou tem de se recompor, através da procura de novos nichos de mercado. Na impossibilidade de competição em escala (na industria e em serviços) há que optar por negócios supostamente menos interessantes. Estes pequenos negociantes, enraizados ao nível regional, provenientes de famílias com ramificações políticas ou influência social conseguem desenvolver protagonistas locais e desenvolver negócios atractivos ao investimento (estrangeiro ou não) em sectores de serviços que fruto das vinculações e proximidades acabam por se revelar lucrativos.A par desta circunstância vão descobrindo o apetite por toda esta nova área de trabalho que são os serviços públicos.
O processo de esvaziamento e dissolução dos serviços públicos obedece a três etapas decisivas:
Desinvestimento
Descredibilização
Compartimentação ou transformação da estrutura de gestão.
Trata-se de um processo que, consoante a dimensão, relevância ou impacto social leva de 3 a 10 anos a concretizar.
No primeiro cenário, alicerçado na necessidade de elaborar politicas de poupança, procede-se a cortes orçamentais e desvio de hierarquias e funcionários de topo, supostamente promovidos ou cambiados para outros serviços (muitas vezes tentados por contratos mais valiosos do público). Estas alterações levam à necessidade de reenquadramento da actividade ou o assumir a ultrapassagem orçamental. Na primeira verificam-se quebras da prestação, prestação irregular ou incumprimentos; na segunda, obriga o poder político a valorizar e difundir a sua ineficácia em ordem a reforçar o cenário seguinte: a descredibilização. Neste ponto o serviço em causa arrasta-se. Sucedem-se acções reivindicativas que diminuem o tempo e qualidade dos serviços, desmotivam-se os trabalhadores, sucedem-se as criticas públicas e o discurso populista reforça a incapacidade do serviço, ao ponto de, numa cartada mágica conseguir a compartimentação do mesmo (primeira fase da preparação da "venda" dos direitos) ou transformação da estrutura de gestão (que a pouco e pouco será "tomada" ou comprada por este empresariado regional que cederá posições e benefícios a quem conduziu tal processo.
Temos então que:
Um serviço cujo objectivo seria não o lucro mas a prestação de um bem pertencente à comunidade passa para uma entidade privada, sustentada na razoabilidade de custos, qualidade dos serviços e desconcentração gestionária.
Um objecto social passa então a ser "vendido" por um preço de "mercado" para que a "empresa" tenha um "resultado" que lhe permita "sustentar" a qualidade prestada.
Os impostos já pagos pela comunidade nas infraestruturas são ignorados porque no processo de "venda" ou passagem do serviço mediante concursos mais ou menos sérios entrega um bem da comunidade (canalizações, viaturas especializadas, edifícios, etc.).

Mesmo quando há ressarcimento ao Estado pelas infraestruturas pré-existentes, subsistirá sempre um apoio, subsidio, investimento estatal que se considera um "estímulo" e "valorização" pelo facto da empresa ter de realizar o "sacrifício" do serviço para o qual concorreu e que, como sabemos, "é deficitário".
Nas experiências que tenho observado a nível internacional, verifico que o "negócio" não se fica por um serviço (já agora, em regime de monopólio). São os já conhecidos e o arranjo das ruas, segurança, iluminação, gestão de espaços culturais e patrimoniais, conversão de espaços degradados ou recomposição de espaços históricos, museus, etc. Este modelo transforma a cidade numa espécie de condomínio gigante, onde o cidadão tem, como único interlocutor a composição eleita da governação local que por norma elege contrafeita e na perspectiva do "mal menor". Depois, tal como nos condomínios desvincula-se da gestão corrente, criticando aqui e ali o que vai notando.
Entretanto, a gestão privada do "negócio deficitário" a prazo exigirá cada vez mais verbas ao cidadão. Não numa primeira fase, dado que a negociação política retira ganhos pela sua demissão do papel de sustentação social dos serviços que deixa de prestar. Sem despesas com pessoal e com o funcionamento geral do serviço, a Autarquia reduz as despesas afectas, libertando-se também do fardo de assegurar um benefício social. Apenas assegura o controle da gestão do negócio por via de técnicos especializados que deverão ter a função de vigiar a prestação. Não se trata de lucros de exploração mas sim de poupança de gastos. Todavia, a jusante, esta recuperação terá os seus custos implícitos, uma vez que o regime de monopólio e contratualização não permitirá nunca a Autarquia colher qualquer benefício directo da prestação. Numa lógica de gestão empresarial, a empresa prestadora tenderá a fazer "mais com menos recursos" (frase liberal que quer dizer que o trabalhador ganhará menos pelo dobro do serviço e que o beneficiário terá de pagar mais por uma pior prestação). Mesmo que o poder político tente reagir, nunca o poderá fazer contra a empresa prestadora, pelas vinculações familiares que esta apresenta, porque a suspensão de um contracto acarreta custos (que não poderá suportar porque deixa de ter receitas…dos serviços que alienou) e porque, indirectamente, a Autarquia poderá perder uma fonte de receitas "lateral" correspondente aos "apoios e patrocínios ao objecto social ou cultural da cidade", que são a ponta de lança da manutenção do seu próprio poder.No limite, a Autarquia dissolve-se em termos de poder, as entidades privadas ficam sem controle e o cidadão tem de se confrontar com as empresas na óbvia desvantagem do que isso representa.
Mas nessa cidade privatizada obviamente que as coisas mudaram. A reconstituição urbana atrai construtores e promotores imobiliários vendendo o glamour de viver dentro de um tecido urbano de qualidade, seja histórica, arquitectónica, dotada de todos os serviços necessários e desnecessários. Essa cidade especulada vê o preço da sua existência aumentar, levando a que o autóctone natural de menores recursos tenha de abandoná-la a troco de um subúrbio descaracterizado e desumano.
A pouco e pouco afluem à cidade os "novos indígenas", pessoas de recursos elevados, o aparatchick dos instalados, as suas famílias e amigos. Os bairros tradicionais transformam-se em ateliers, as grandes fábricas de outrora condomínios de luxo, as zonas degradadas em espaços de lazer ou clubes privados e todo o povo cuja existência deu forma a cidade é transportando em êxodo lento e gradual para "fora das muralhas".
A renovação simbólica da cidade da qual os cidadãos não fazem parte ou não são ouvidos é o princípio da alienação da cidadania. Retirando a simbologia identificadora, os sinais de pertença desaparecem, levando a indiferença pelos destinos do espaço urbano, a crença de que a opinião ou intervenção politica não conta e a frustração e tristeza por perceber a usurpação dos seus direitos como um "devir dos tempos".
As questões lançadas tem naturalmente mais impacto em cidades de valor histórico do que em espaços urbanos instantâneos americanos, portanto é uma questão mais europeia do que do outro lado do Atlântico.
Como nota final apraz-me dizer que nem tudo é uma questão de globalização: cabe ao cidadão começar a escolher criteriosamente os seus representantes, exigir deles uma opinião clara e objectiva sobre o que pretendem e exigir mecanismos constitucionais de auto-defesa que permitam às populações correr com quem não cumpre objectivamente os seus desígnios ou enxotar aqueles que sem uma ideia política, sem o mínimo interesse pelas pessoas, sem outro objectivo que não seja a sua auto-promoção construa uma carreira às costas dos eleitores.

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